O urbanismo português, a síntese de diferentes concepções de espaço.
As cidades portuguesas apresentam características morfológicas específicas, que as distinguem das cidades de outras culturas. Esta especificidade formal resulta de múltiplos factores, de entre os quais: as diferentes influências e concepções de espaço que estão na origem da cultura urbana portuguesa; a selecção de locais topograficamente dominantes como núcleos iniciais dos aglomerados urbanos; a íntima articulação dos traçados das cidades com as particularidades topográficas locais; a estruturação das cidades em núcleos distintos, com malhas urbanas diferenciadas, correspondendo cada uma delas a diferentes unidades de crescimento; a localização de edifícios singulares em sintonia com a topografia, e o importante papel destes edifícios na estruturação dos traçados urbanos; a lenta estruturação formal das praças urbanas, associadas a diferentes núcleos geradores e a funções distintas; a constância da estrutura de loteamento e das tipologias de construção a ela associadas, ao longo do tempo; finalmente, o processo de planeamento e de construção da cidade portuguesa, que é sempre projectada no sítio e com o sítio, isto é, quer a cidade se desenvolva gradualmente quer se desenvolva a partir de um plano pré-definido, o seu traçado apenas se concretiza no confronto com a estrutura física natural do território.
Em todas as cidades portuguesas encontramos articuladas uma componente vernácula e uma componente erudita. A componente vernácula corresponde à cidade que é construída sem o recurso a técnicos especializados e em que se observa uma estreita relação do traçado urbano com as características topográficas dos seus locais de implantação. Este modelo de cidade tende a ser menos regular e a ser estruturado fundamentalmente a partir de funções e de edifícios singulares, civis ou religiosos, situados em locais proeminentes da malha urbana. Estes edifícios localizados em posições dominantes assumem uma importância primordial, dando sentido e estruturando os espaços urbanos envolventes.
A componente erudita corresponde à participação de técnicos especializados, detentores de um saber intelectual, no desenho da cidade. Esta componente erudita, geralmente associada ao poder, está presente nos traçados regulares medievais dos séculos XIII e XIV, nos traçados modernos dos séculos XV e XVI, nos traçados urbanos ligados às fortificações do século XVII, bem como nos traçados iluministas dos séculos XVIII. Este modelo de cidade tende a ser mais regular, planeado e construído de acordo com um esquema racional: uma ordem geométrica pré-definida que estrutura um traçado urbano, em cuja ordem se vêm inserir os diferentes tipos de edifícios e de funções. Neste caso, mais do que os edifícios, é o espaço urbano em si mesmo, definido por um traçado regular, que é o elemento fundamental.
Cidades cuja construção é pouco controlada centralmente e resulta da interacção de múltiplos interesses privados tende a ser, no seu conjunto, pouco regular e baseada em princípios da cultura urbanística não codificados explicitamente e que usualmente se designam por vernáculos. Pelo contrário, cidades cuja construção é directamente controlada pelo poder tendem a adoptar modelos formais regulares, baseados nas culturas arquitectónica e urbana eruditas. A cidade racional, geométrica e planeada, é a cidade do poder, podendo afirmar-se que quanto mais centralizado, e mais forte, é o poder, mais a racionalidade e a geometria se afirmam.
A regularidade do traçado evidencia uma atitude deliberada de planeamento, e o planeamento está associado ao poder: o poder de planear e o poder de impor a concretização do modelo planeado. Estreitamente associados à ideia de planeamento surgem também a ideia de regularidade, que se expressa muitas vezes através da ortogonalidade, e o conceito de teoria, isto é, a capacidade de construir modelos intelectualmente. Plano, poder, regularidade e teoria são assim conceitos que nos surgem intimamente associados.
Nas cidades de origem portuguesas, cada uma destas concepções espaciais acentua-se ou esbate-se conforme as circunstâncias históricas ou geográficas da sua construção. Em Portugal, estas duas componentes vão-se sobrepondo e articulando ao longo dos séculos, enquanto nas cidades ultramarinas, esta dualidade está muitas vezes presente simultaneamente nas suas várias fases de construção. A cidade portuguesa caracteriza-se sempre pela síntese destas duas componentes, harmonizando num todo coerente estas duas formas de fazer cidade. A especificidade do urbanismo português reside, em grande parte, na síntese destas duas concepções de espaço.
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2. A urbanização em Portugal. Periodização das suas principais fases de desenvolvimento.
Existem referências da passagem de diversos povos mediterrânicos pelo território que é hoje Portugal, aí fundando feitorias e colónias ou ocupando efectivamente o território por períodos extensos, deixando uma marca perene nas suas estruturas urbanas ou pré-urbanas. De entre eles, desde o século XII a.C., os Fenícios, os Gregos e os Cartagineses, os Romanos a partir do século II a.C., a que se sucederam a partir do século V os Alanos, os Visigodos e os Suevos, e depois do século VIII até ao século XIII, os Muçulmanos.
A civilização romana vai estabelecer no território que hoje corresponde a Portugal uma rede urbana bem estruturada e hierarquizada. Como centros principais devem destacar-se Braga, Santarém e Beja, que constituíam centros de primordial importância para a organização política do território. A estas deve juntar-se ainda Lisboa, pelas suas importantes actividades portuárias e comerciais. Imediatamente a seguir, nesta hierarquia de cidades, devem acrescentar-se Chaves e Évora, que tinham um estatuto proeminente no conjunto das cidades romanas.
A decadência do império Romano torna-se patente nos primeiros séculos da era cristã, acentuando-se a crise a partir de meados do século III, quando Francos e Alanos invadem a Península Ibérica, a que se sucedem Vândalos e Suevos. No início do século V os Visigodos ocupam a maior parte do território português, que dominam até às invasões muçulmanas que se iniciam no princípio do século VIII. No período bárbaro, terá havido uma redução da urbanização. As cidades vêem-se reduzidas na sua superfície, em vias de despovoamento e privadas de muitos dos seus equipamentos e funções urbanas. A excepção a este panorama de decadência urbana são as funções religiosas e administrativas das cidades que subsistiram como sedes episcopais, como foi o caso de Lisboa e de Santarém, no território visigodo, e de Braga, capital do reino suevo.
A partir do século VIII, o domínio muçulmano vai traduzir-se numa nova fase de expansão urbana. A antiga rede de cidades estabelecida pelos romanos revitaliza-se, através do restabelecimento das suas funções administrativas e do renovar da actividade comercial. Santarém, Lisboa, Setúbal, Évora, Alcácer do Sal, Mértola e Silves surgem-nos como as principais cidades do centro e do sul do território neste período, algumas delas desenvolvendo em torno de si constelações de núcleos urbanos de menor dimensão, estruturando uma rede urbana densa e bem hierarquizada. Lisboa começa neste período a assumir-se como grande metrópole comercial. A norte do Tejo, Coimbra era a cidade de maior dimensão e importância a seguir a Lisboa. Apesar da ocupação muçulmana de cidades como o Porto ou Braga, referida por alguns cronistas, a islamização teve pouca expressão a norte.
Com o avanço da Reconquista, os principais centros urbanos foram sendo integrados no espaço cristão, sem que isso tenha implicado alterações significativas quer na posição destas cidades no sistema urbano quer, pelo menos nos primeiros tempos, alterações nas suas morfologias. Após a formação da nacionalidade, verificam-se quatro fases principais de urbanização em Portugal, que são também momentos importantes da estruturação da rede urbana portuguesa. A segunda metade do século XIII e o princípio do século XIV, correspondem à plena ocupação do território nacional após a conclusão da reconquista, e à construção de novas cidades medievais segundo modelos regulares. Esta regularidade denuncia a sua intencionalidade e o poder centralizador que estava por detrás da sua fundação. Entre muitas outras, foram fundadas neste período Viana do Castelo, Valença, Monção, ou Assumar, Monsaraz, Niza.
As cidades do interior mantiveram a sua importância até meados do século XIV, declinando rapidamente no século seguinte em consequência do desenvolvimento do comércio marítimo e do início da expansão ultramarina. As cidades portuárias foram aquelas que mais beneficiaram da expansão do comércio marítimo. Lisboa, Porto, Setúbal ou Viana do Castelo são exemplos de cidades que foram reestruturadas no século XV e XVI, beneficiando já da adopção de princípios urbanísticos modernos. Os séculos XV e XVI, correspondem também às primeiras experiências de urbanização fora do território continental, em que se incluem o Funchal e Ponta Delgada e ao desenvolvimento dos primeiros traçados urbanos regulares, de influência renascentista, na cidade de Angra, no Bairro Alto de Lisboa, ou em Braga.
Em Portugal, a segunda metade do século XVII, correspondendo ao período da guerra da Restauração, após o domínio filipino, vai determinar a fortificação de muitas vilas e cidades fronteiriças, de acordo com as modernas regras de fortificação, e provocar a reestruturação das sua malhas urbanas. Cidades fronteiriças que haviam sido criadas no período medieval, também numa conjuntura de guerra e que haviam permanecido adormecidas durante séculos, vão adquirir um renovado dinamismo. Estão neste caso, entre outras, Monção, Valença, Caminha ou Estremoz.
Mas o grande campo de desenvolvimento do urbanismo português, dos séculos XVI a XVIII, foram os territórios ultramarinos, através da fundação de fortes, de feitorias e de núcleos urbanos ao longo das costas de África, do Brasil, da Índia e do Extremo Oriente. É particularmente no Brasil, por se tratar de um território anteriormente não urbanizado, que vai ser possível observar a crescente aplicação de traçados regulares no planeamento de vilas e de cidades construídas de raiz ao longo destes séculos.
No século XVIII acentua-se o peso demográfico de Lisboa e do Porto relativamente aos centros urbanos de menor dimensão que vêm diminuir a sua importância. É neste século que se assiste a uma nova fase de franco desenvolvimento urbano em Portugal, que corresponde ao desenvolvimento e à plena expressão dos princípios racionais iluministas nos traçados geométricos Pombalinos. Para além da reconstrução de Lisboa motivada pelo terramoto de 1755, a construção de Vila Real de Santo António e as obras levadas a cabo no Porto são exemplos importantes desta acção urbanizadora.
Ao longo deste período histórico é possível observar uma grande constância da rede urbana portuguesa. Para além de mudanças na importância relativa de vários núcleos urbanos em determinados períodos, devido a razões conjunturais, todos os principais centros urbanos actuais eram já centros importantes no século XVI e a maioria deles remontam mesmo ao período romano.
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3. A relação com o território. As influências da civilização mediterrânica.
Uma das características fundamentais dos traçados urbanos portugueses é a sua capacidade de entender e de se articular intimamente com as características físicas do território. A escolha do sítio era a primeira forma de relação com o território. Numa continuidade de tradição que remonta aos castros pré-romanos, muitas cidades portuguesas - incluindo Lisboa, Porto, Coimbra - tinham o seu núcleo primitivo localizado no topo de uma colina proeminente, a partir do qual a cidade se desenvolvia. A localização destes núcleos urbanos em pontos dominantes do território, em locais de difícil acesso e facilmente defensáveis, bem como as cortinas de muralhas que geralmente os rodeavam, eram justificados por razões de defesa, as mesmas que haviam de levar, em sucessivas épocas históricas e em diferentes contextos geográficos, à escolha de locais elevados para a implantação das cidades portuguesas.
Coimbra
Muitas cidades portuguesas eram construídas na costa marítima ou nas margens de rios, dadas as actividades comerciais a que estavam associadas. Esta localização costeira, associada à escolha de sítios elevados para a implantação do núcleo original, levou a que a maior parte destas cidades estivesse organizada em dois níveis - a cidade alta e a cidade baixa - com funções e características bem distintas. A cidade alta era a sede do poder civil e religioso, enquanto a cidade baixa era o local onde se desenvolviam as actividades marítimas e comerciais.
As fases posteriores de desenvolvimento urbano estavam igualmente intimamente articuladas com o território. Essa relação com o território pode observar-se na definição da rede urbana e no estabelecimento dos percursos regionais, na estruturação da malha urbana, na escolha de locais para a implantação de edifícios singulares, no estabelecimento dos principais percursos urbanos, na geração de espaços de confluência e de largos, bem como na geração de formas urbanas específicas. Se bem que esta relação com o território seja particularmente evidente nos traçados urbanos que se desenvolveram gradualmente de uma forma não planeada, o urbanismo português de carácter erudito soube contudo integrar este entendimento do território nos seus próprios planos de cidade.
A cidade portuguesa deve muitas das suas características à cultura urbana mediterrânica, de que a cidade grega é expressão, e em que sobressai precisamente esta capacidade de entender e de se articular intimamente com o território. De entre estas características, refiram-se particularmente a sua localização privilegiada na costa marítima; a escolha de sítios elevados para a implantação dos núcleos defensivos; a estruturação da cidade em dois níveis: a cidade alta, institucional e política, e a cidade baixa, portuária e comercial; a cuidadosa adaptação do traçado das ruas às características topográficas locais; um perímetro de muralhas, quando existia, que não acompanhava o tecido construído, antes se adaptava às características do território; e uma concepção de espaço urbano em que eram os edifícios localizados em posições dominantes que davam sentido e estruturavam os espaços envolventes. Na cidade portuguesa, os edifícios públicos, civis ou religiosos, localizados em pontos proeminentes do território e associados a uma arquitectura mais cuidada que os destacava na malha urbana, tinham um papel estruturante fundamental na organização da cidade. São estas características que observamos em cidades como Lisboa, Porto ou Coimbra, já referidas, mas também em muitas cidades coloniais como Luanda, Salvador da Baía ou Rio de Janeiro.
Luanda
Salvador da Baía
Estes edifícios notáveis, e os espaços urbanos a que se encontravam associados, tornavam-se pontos fulcrais do desenvolvimento e da organização da malha urbana, quer se tratasse de cidades de origem vernácula e com um crescimento gradual, quer se tratasse de cidades de origem erudita e planeadas. Em todas as situações havia sempre a preocupação de marcar e de valorizar arquitectonicamente e urbanisticamente as particularidades topográficas e locacionais de cada lugar. Mesmo quando se tratava do desenho de sistemas de fortificação no século XVII, de acordo com princípios de rigor renascentista e que deviam responder eficazmente às necessidades militares, uma das características importantes dos sistemas de fortificação portugueses era a configuração de uma linha poligonal irregular que resultava da sua adaptação ao terreno.
Rio de Janeiro
A aparente desordem da cidade portuguesa era efectivamente regida por princípios que, embora não codificados num conjunto explícito de regras, eram parte de uma rica tradição urbana que encarava a estrutura do território como uma componente do traçado urbano.
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4. A herança da colonização romana. A ideia de regularidade e de ordenamento.
A ocupação romana do território que hoje corresponde a Portugal decorre a partir do século II a.C.. No século IV, Suevos e Visigodos ocupam a maior parte deste território, que dominam até às invasões muçulmanas que se iniciam em 711. A cultura e a civilização romanas eram territoriais, baseadas numa efectiva ocupação e controlo da terra. A colonização romana passava pelo estabelecimento de uma bem estruturada rede de implantações urbanas e de comunicações terrestres para a ocupação efectiva do território. A acessibilidade era um requisito fundamental na escolha de localizações, tendo os romanos optado por cruzamentos de rios ou intersecções de estradas, em vez dos mais facilmente defensáveis topos de colinas.
Os princípios urbanísticos da cidade romana de colonização, baseados na regularidade, na racionalidade e na ordem foram também impostos a várias cidades portuguesas: quer a cidades criadas de novo, quer a cidades já existentes e que foram ocupadas e reestruturadas durante o período de ocupação romana. A urbanização romana de Portugal fez-se destes dois modos, através da fundação de novas cidades e através de intervenções em aglomerados já existentes. O modelo urbanístico destas cidades era o das cidades coloniais romanas. Tratava-se de cidades regulares, com uma estrutura ortogonal de ruas e de quarteirões. Duas ruas perpendiculares entre si - o cardus e o decumanus - constituíam os dois eixos viários principais e as directrizes fundamentais da cidade. Adjacente à intersecção destes dois eixos, no centro da cidade, localizava-se o fórum, que era ao mesmo tempo centro da vida pública e religiosa, local de reunião e mercado. O fórum concentrava os edifícios dedicados às funções político-administrativas, judiciais, religiosas e comerciais da cidade. As ruas secundárias eram traçadas paralelamente aos dois eixos principais, definindo no conjunto uma malha de ruas ortogonais e de quarteirões quadrados e rectangulares. Os equipamentos urbanos, em maior ou menor número conforme a importância e a dimensão da cidade localizavam-se em diversos pontos da malha urbana.
Este sistema tinha um desenvolvimento pleno quando a cidade se construía de raiz, mas mesmo quando se tratava da remodelação de aglomerados urbanos já existentes, a estrutura regular ortogonal continuava a ser a referência, ainda que condicionada pelos traçados anteriores ou pelas condições topográficas locais. Subsistem vestígios mais ou menos evidentes de traçados romanos em algumas cidades portuguesas, nomeadamente em Évora, em Beja e em Braga, onde nalguns sectores se observam as marcas de uma estrutura regular ortogonal, de acordo com os modelos de referência do urbanismo colonial romano.
Para além das cidades, a influência da civilização de Roma estendia-se a todo o território, modelando a paisagem. Através da construção de aquedutos, de estradas e de pontes, através da definição de um novo cadastro rural, também baseado numa quadrícula, que regularizava o parcelamento agrícola, a racionalidade subjacente ao desenho das cidades introduzia também no campo as marcas da nova civilização, e estruturava todo o território. É ainda possível encontrar em regiões do sul de Portugal traços desta quadrícula, baseada na centuria quadrata, correspondendo a um quadrado com cerca de 710 metros de largo e uma área de 50 hectares, que dividia o campo de forma regular.
A tradição de regularidade da cidade romana vai ser uma componente importante da cultura urbana portuguesa por via erudita. A adopção de modelos racionais na cidade portuguesa é uma constante ao longo dos séculos, sempre associadas a acções de planeamento promovidas pelo poder. Encontramos esses modelos racionais nas cidades medievais planeadas dos séculos XIII e XIV, nas cidades e nas extensões urbanas planeadas, com influências renascentistas, dos séculos XVI e XVII, e nas cidades geometrizadas do Iluminismo do século XVIII. Na génese destes modelos racionais encontramos a deliberada reformulação teórica dos princípios urbanísticos romanos, reafirmados e consolidados nas culturas renascentista e iluminista.
Mais do que por razões estéticas ou cosmológicas, embora elas também estivessem presentes, a regularidade dos traçados tinha a ver com a eficácia de planeamento e de construção que tais modelos permitiam. No caso de cidades construídas de novo, a adopção de um traçado regular - no limite a adopção de uma quadrícula - era a forma mais rápida e mais equitativa de fundar uma cidade num novo local.
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5. A influência da cultura muçulmana nos traçados urbanos portugueses.
Os traçados urbanos de origem muçulmana e os princípios que lhes deram forma constituem também uma importante componente da tradição urbana portuguesa. Na sua longa permanência em Portugal, do século VIII ao século XIII, os muçulmanos deixaram as marcas da sua cultura urbana em cidades do centro e do sul de Portugal que fundaram ou que ocuparam e adaptaram às suas necessidades. A civilização islâmica foi essencialmente urbana, tendo dado forma a um tipo de cidade com uma estrutura uniforme, apesar da sua aparente desordem. As interpretações da cidade islâmica que a caracterizam pela ausência de ordem e de planeamento resultam da sua comparação com a cidade romana de colonização, onde essa ordem é muito mais aparente para os olhos ocidentais. Os muçulmanos tinham preocupações com a escolha do sítio para a implantação das suas cidades, que só se construiam em locais de águas não poluídas, com boas terrras para cultivo e boa qualidade do ar. Eram características da cultura urbana muçulmana, que ainda permanecem inscritas nos espaços urbanos de muitas cidades portuguesas, a tradição dos espaços fechados, a sinuosidade dos traçados, a existência de rossios de feira localizados extramuros, e de espaços abertos junto às portas das muralhas, no interior ou no exterior, que substituíam em algumas das suas funções as praças inexistentes.
As necessidades de defesa, as características ecológicas do espaço geográfico em que estas cidades se construíam, e o estilo de vida não ostensivo prescrito pelo Corão contribuíam para o carácter íntimo das suas ruas, tortuosas, com diferentes perfis ao longo do percurso, das quais saíam ruas em cotovelo ou becos que davam acesso a pequenos conjunto de casas construídas em torno de impasses. As condições climáticas aconselhavam igualmente o sombreamento e a pouca largura das ruas. As casas eram por todas estas razões viradas para pátios interiores, e as poucas aberturas para a rua eram protegidas por janelas, rótulas e muxarabis.
Na cidade muçulmana confluem dois tipos de factores determinantes da sua forma. Aqueles que derivavam das condições materiais e ambientais do espaço em que se implantam, e aqueles que derivavam de factores culturais e religiosos. Relativamente aos primeiros, as cidades muçulmanas eram também herdeiras de uma civilização e de uma cultura mediterrânicas que as tornavam semelhantes, em muitos aspectos, a cidades da cultura ocidental localizadas nesse mesmo espaço geográfico. Em relação aos segundos, será de lembrar que antecedendo a expansão islâmica no século VIII, quer o Sul da Europa quer o Norte de África faziam parte do mundo cristão, o que reforçaria ainda mais a identidade formal entre as cidades de um e do outro lado do Mediterrâneo. As influências religiosas na estruturação dos espaços urbanos só posteriormente se fariam sentir nas cidades ocupadas, contribuindo para a progressiva diferenciação de uma realidade que seria idêntica à partida.
Essa identidade justifica a aparente facilidade de adaptação mútua – quer por parte de cristãos quer por parte de muçulmanos – às cidades construídas por uns e por outros durante os séculos de conquista e de reconquista. É difícil avaliar hoje o que seria a cidade muçulmana nos séculos VIII a XIII em Portugal, qual o grau de diferença ou de semelhança relativamente às cidades medievais cristãs suas contemporâneas ou que lhe sucederam. De qualquer forma, espaços urbanos com as suas raízes simultaneamente na cidade cristã e na cidade muçulmana estavam ainda bem presentes nas cidades portuguesas do século XV, no início da expansão ultramarina. Este tipo de cidade, que havia evoluído ao longo de séculos sincretizando as duas influências, constituía uma parte importante do quadro de vida, e consequentemente uma referência básica para os construtores de cidades além-mar.
Lisboa
É ainda hoje possível apercebermo-nos das influências urbanísticas islâmicas que permanecem nos traçados de cidades portuguesas, bem como na permanência de hábitos de vida urbana.
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6. As cidades medievais planeadas. A regularidade dos traçados.
Entre o século III, em que se inicia o declínio das cidades europeias, e o renascimento urbano do século XIII, existem elos de continuidade com o mundo da Antiguidade Clássica, que permanecem ao longo da Idade Média. São esses laços, por vezes ténues, que vão permitir o florescimento das cidades medievais planeadas no território português a partir do século XIII e, mais tarde, a partir do século XVI, das cidades já imbuídas dos ideais renascentistas que se vão construir principalmente fora da metrópole.
A partir do século XII observa-se na Europa o retomar da tradição dos traçados urbanos regulares da Antiguidade, sendo os traçados urbanos em quadrícula aplicados quer na criação de cidades novas, quer nas expansões planeadas de cidades já existentes. Os séculos XII a XIV correspondem em toda a Europa a um período de fundação de novas cidades, incluindo Portugal. Característica comum a estas fundações medievais por toda a Europa é o facto de elas terem sido planeadas e construídas de acordo com um plano regular, o que assegurava uma maior rapidez e eficácia na sua fundação e na distribuição de terrenos pelos colonos, bem como na sua construção e desenvolvimento posterior. Eram geralmente cidades de mil a dois mil habitantes, com uma estrutura regular, geometrizada, muitas vezes ortogonal e rodeadas por uma muralha. Dentro da cidade, a estrutura de loteamento era regular, sendo idênticas as dimensões de todos os lotes. Algumas destas cidades vão retomar explicitamente princípios do urbanismo romano.
Em Portugal a fundação de cidades novas estava ligada aos processos de reconquista e de repovoamento dos territórios conquistados aos Mouros e da necessária reorganização política e económica do Reino. Estas cidades foram construídas principalmente em zonas de fronteira, ou em áreas que necessitavam de ser consolidadas e colonizadas. D. Afonso III e D. Diniz, fundaram várias destas povoações, nalguns casos reordenando núcleos de povoamento já existentes, noutras construindo-as de raiz. Incluem-se aqui, entre muitas outras, Viana do Castelo, Monção, Caminha, Valença, Miranda do Douro, Vila Real, Redondo, Assumar, Monsaraz, Alegrete, Vila Viçosa, Niza.
Viana
Os traçados destas cidades portuguesas não evidenciam tão explicitamente como outras cidades europeias suas contemporâneas as suas referências aos cânones da antiguidade. Não existem traçados em quadrícula e a praça ou não se localiza no centro ou não existe, só se vindo a estruturar gradualmente ao longo dos tempos. Apesar disso, os traçados destas cidades medievais eram regulares, concebidos de acordo com um padrão geométrico, tendendo para uma organização ortogonal de ruas e quarteirões. Estas cidades consistem de um conjunto de quarteirões com uma forma rectangular alongada, cada um deles constituído por uma sucessão de estreitos lotes urbanos paralelos uns aos outros e orientados no mesmo sentido, com uma face para uma rua principal e outra face para uma rua de traseiras. Estruturava-se assim uma hierarquia de ruas de frente e de traseiras, cortadas por transversais, característica destas cidades medievais.
Monção
Cada quarteirão era composto por um número idêntico de lotes, e as dimensões das ruas principais e secundárias, dos quarteirões e dos lotes eram constantes dentro de cada cidade. Para além disso, é possível encontrar algumas constantes entre estas dimensões nas várias cidades. Os lotes urbanos variavam geralmente entre os 25 e os 30 palmos de frente (entre 5.5 e os 6.6 metros), dimensões de loteamento que vamos encontrar a partir daí ao longo dos séculos em muitas cidades construídas portuguesas, pelo mundo fora, e que estão na origem às frentes de casas com três vãos, características das cidades portuguesas.
Valença
Dado o papel defensivo de muitas destas cidades, a sua localização era por vezes em sítios elevados, mais facilmente defensáveis. Contudo, apesar da irregularidade de muitos dos locais em que estas cidades medievais eram construídas, os seus traçados e a sua estrutura de loteamento eram regulares. Pelas mesmas razões, a muralha geralmente não acompanhava o perímetro dos quarteirões, mas seguia o percurso mais fácil de construir e de defender. Daqui resultava que entre o perímetro das muralhas e os quarteirões construídos restavam terrenos vazios, por vezes bastante amplos, que eram aproveitados como terreiros. Em muitas cidades novas medievais eram estes terreiros, localizados marginalmente em relação ao tecido construído, junto ás muralhas, que cumpriam originalmente as funções de praça. O mercado e outras funções colectivas da cidade exerciam-se inicialmente nestes logradouros, onde muitas vezes se localizava também o poço.
Monsaraz
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7. As cidades insulares do século XV. Os modelos de referência vernáculos e medievais planeados.
O início da expansão marítima portuguesa a partir das primeiras décadas do século XV é simbolicamente marcado pela conquista de Ceuta em 1415. A descoberta e o início da ocupação dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, ainda na primeira metade do século XV, são marcos importantes das fases iniciais da expansão marítima.
As cidades do Funchal, de Ponta Delgada, da Horta, entre outras, apresentam idênticas características de traçado urbano. As fases iniciais destes núcleos populacionais eram simples estruturas de ocupação do território, adaptadas às condições geográficas existentes e realizadas pelos próprios colonos. Em fases posteriores de desenvolvimento, que contariam já com o apoio de técnicos de arruação, observa-se a adopção como principais referências para a estruturação destas cidades insulares dos modelos das cidades medievais planeadas em Portugal nos séculos XIII e XIV. Entre a estruturação de Niza ou de Viana do Castelo - cidades do século XIV com traçados urbanos regulares planeados, de origem medieval - e o início da construção do Funchal decorrem pouco mais de cem anos. No momento em que se inicia o desenvolvimento das cidades atlânticas, os novos conceitos de cidade e as novas formas urbanas que irão resultar da pesquisa teórica renascentista não estavam ainda sistematizados.
Os sítios escolhidos para a implantação inicial destes núcleos urbanos apresentam características idênticas em muitos casos: amplas baías abrigadas viradas a Sul, com óptimas condições de porto natural, protegidas nos extremos por morros, promontórios ou ilhas que asseguravam a fácil defesa da entrada do porto e da cidade. Um caminho ao longo da costa, paralelo ao mar, constituía a estrutura primordial de ocupação do território, ligando núcleos de ocupação primitivos, casas do donatário ou capelas localizadas nos extremos deste caminho. Uma forma de povoamento linear desenvolvia-se ao longo deste caminho que, em muitos casos, virá a transformar-se na rua principal do aglomerado e continuará a ser, até hoje, a rua principal da cidade.
Açores
Numa fase subsequente desenvolviam-se uma ou duas outras ruas, paralelas à primeira e a curta distância desta para o interior e algumas transversais de pequena dimensão que as ligavam. Estruturava-se assim um pequeno número de quarteirões, de forma sensivelmente rectangular, com a maior dimensão paralela à linha de costa. É esta primeira malha urbana que apresenta características morfológicas de traçado, da estrutura de quarteirões e de loteamento bastante idênticas às das cidades medievais planeadas em Portugal nos séculos XIII e XIV. Enquanto as fases iniciais de implantação eram da responsabilidade dos próprios colonos, fases posteriores de desenvolvimento contariam já provavelmente com o apoio de especialistas que faziam a arruação ordenada das novas expansões, adoptando princípios urbanizadores e referências oriundas do urbanismo medieval.
Funchal
Nas fases seguintes de crescimento urbano eram construídas ainda outras ruas paralelas à rua primitiva que se desenvolvia ao longo da costa. No entanto, dada a distância cada vez maior a que cada uma das ruas era traçada relativamente às anteriores, os quarteirões formados por elas e pelas transversais eram agora mais alongados e dispunham-se perpendicularmente ao mar. Se bem que os grandes eixos estruturantes da cidade continuassem a ser as ruas paralelas à linha de costa, as ruas que as cruzavam e se dispunham perpendicularmente ao mar tendiam a adquirir uma importância crescente na estrutura da cidade, tornando-se progressivamente a direcção dominante do traçado.
Horta
Vamos encontrar estas mesmas características de traçado urbano - no que se refere quer à escolha dos sítios de implantação inicial, quer à forma como estas cidades evoluíram e se estruturaram nas primeiras fases do seu desenvolvimento - noutras cidades construídas em contextos geográficos e históricos diferentes, nomeadamente no Rio de Janeiro, fundada na segunda metade do século XVI.
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8. A regularidade dos traçados insulares do século XVI. A experimentação e a inovação, a adopção de modelos eruditos.
A inovação nos traçados urbanos das cidades insulares observa-se a partir de finais do século XV, através da construção de novas zonas de expansão e através de intervenções que vão reestruturar partes centrais da malha urbana. Na cidade do Funchal, o donatário da ilha da Madeira, D. Manuel, Duque de Beja e futuro rei D. Manuel I, vai ter um papel determinante na modernização da cidade nos finais do século XV e princípio do século XVI. Nestas intervenções urbanas incluem-se a construção de novos edifícios institucionais, nomeadamente a Casa da Câmara, o Paço de Tabeliães e a Sé, a construção de uma nova praça urbana a ela associada, o terreiro da Sé, bem como a construção de um novo sector da malha urbana constituída por um conjunto de novos quarteirões, planeados e construídos segundo uma estrutura ortogonal regular.
A modernidade destas intervenções liga-se a dois aspectos fundamentais. Por um lado, a praça da Sé já não é um espaço residual que resulta do encontro de várias ruas ou situado à margem da malha urbana edificada; pelo contrário, é um espaço urbano regular com características próprias, deliberadamente construído como parte do novo vocabulário urbano que D. Manuel procurava instituir nas cidades portuguesas. Por outro lado, a estrutura de ruas que compõem esta malha já não é uma estrutura medieval, constituída por ruas de frente e de traseiras que se alternam e em que os lotes se dispõem todos paralelamente, segundo uma única direcção; pelo contrário, os lotes orientavam-se agora para as quatro frentes do quarteirão, criando uma estrutura de ruas mais urbana, todas "de frente", em que a hierarquização é feita pelo seu perfil, pelas funções e pela arquitectura dos edifícios que nelas se vêm construir e pela sua relação com outros componentes da malha urbana. Observa-se aqui no Funchal o desenvolvimento, e a aplicação pela primeira vez, de uma estratégia de desenvolvimento e de modernização urbana que D. Manuel I irá aplicar em inúmeras cidades do reino após a subida ao trono em 1495.
São estes princípios que, poucos anos depois, de uma forma mais amadurecida, vemos serem aplicados no plano da cidade de Angra. A partir da primeira metade do século XVI, a cidade de Angra estrutura-se com um traçado regular verdadeiramente inovador, apresentando já uma ruptura clara com os modelos medievais, e explorando traçados e concepções de malha urbana de influência renascentista.
Angra
O plano de Angra estrutura-se de uma forma bastante regular: uma malha urbana sensivelmente ortogonal, com as ruas principais orientadas perpendicularmente à linha de costa e as secundárias cruzando-as em ângulo recto. Esta estrutura de ruas define um conjunto de quarteirões rectangulares orientados na direcção do mar. Cada um destes quarteirões era constituído por duas filas de lotes urbanos organizados costas-com-costas. As frentes destes lotes estavam virados para as ruas principais, perpendiculares ao mar, não havendo lotes urbanos orientados para as ruas transversais. A estrutura de loteamento era regular, tendo os lotes as dimensões habituais de 30 palmos (6,6 metros) de frente. O centro deste plano era a igreja da Sé, situada no meio de uma praça rectangular que correspondia, pelas suas dimensões e pela sua relação com a restante malha urbana, a um quarteirão não construído. Tal como a praça da Sé no Funchal, também esta era um praça nova, geometrizada, que correspondia a um novo programa de cidade e a um novo conceito de espaço urbano, e que, de uma forma embrionária, constituía já um importante elemento gerador da malha urbana.
Angra
Foi nestas cidades da Madeira e dos Açores que se sintetizaram a prática do planeamento medieval com os emergentes princípios teóricos do urbanismo renascentista. É com o Funchal e com Angra que se inicia a inovação e a experimentação urbanística que ao longo dos séculos seguintes se irá desenvolver em Portugal, no Brasil e no Oriente.
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9. A regularidade do traçados urbanos do século XVI em Portugal. A modernização das cidades.
Nos finais do século XV e ao longo do século XVI observa-se um amplo movimento de renovação urbanística em Portugal consistindo na reforma, alteração ou expansão de cidades existentes. Nalguns casos, estas intervenções incidiam na reforma dos espaços públicos das cidades, particularmente na estruturação de praças urbanas, associadas à construção nesses espaços de novos edifícios institucionais. Casas de Câmara, Misericórdias e Igrejas Matrizes constituíam os edifícios estruturantes da maior parte destas praças. Noutros casos, tratava-se da construção de novas expansões urbanas planeadas, em que eram adoptados novos princípios urbanísticos de regularidade e de ordenamento, e onde se expressava uma concepção moderna de espaços públicos.
Em todas estas intervenções procurava-se a valorização do espaço urbano, e nelas encontramos exemplos das estratégias de composição urbana utilizados pelo urbanismo renascentista a partir do século XVI: as ruas com um traçado rectilíneo e ordenado; a localização de edifícios ou monumentos no enfiamento de ruas, tirando partido do efeito de perspectiva; a utilização do mesmo tipo de elementos como pontos focais de praças ou de espaços que se viriam a estruturar como praças; a definição de praças fechadas e regulares; o ordenamento e a repetição das fachadas; e as malhas urbanas ortogonais. Por detrás de tudo isto estava a ideia de composição global da cidade, em que todos os seus elementos estavam articulados num todo coerente.
As cidades portuárias foram aquelas que mais beneficiaram da expansão do comércio e foram objecto de reformas urbanas. Lisboa, Porto, Setúbal, Lagos, Aveiro, Viana do Castelo são exemplos de cidades que cresceram ou se reestruturaram neste período. Cidades do interior também foram beneficiadas, como foi o caso, entre outras, de Elvas e de Beja onde D. Manuel I mandou construir Praças Novas. A abertura destas praças era frequentemente realizada no interior do próprio tecido urbano consolidado, à custa de demolições e de expropriações, suportadas por medidas de natureza regulamentar. Noutros casos tratava-se da reestruturação de antigos terreiros localizados extramuros. Em Braga, Coimbra e Évora, o renascimento urbano de Quinhentos está associado ao desenvolvimento de estudos superiores nessas cidades e traduziu-se, para além de operações de reforma dos espaços urbanos, na construção de novas expansões programadas.
Évora
Duas das mais significativas intervenções urbanísticas realizadas em Portugal no século XVI são, para além do plano de Angra, o plano para o Bairro Alto, em Lisboa, e as reformas urbanas empreendidas por D. Diogo de Souza em Braga. No Bairro Alto, trata-se do planeamento de uma nova expansão da cidade fora dos limites das antigas muralhas fernandinas, que se inicia no princípio do século XVI e se irá desenvolver ao longo do século. O carácter especulativo desta nova urbanização está marcada pela ausência de praças no seu traçado original, o que, por outro lado, corresponderia ao que seria ainda a tradição dos traçados portugueses. Esta nova urbanização adopta como estrutura de base uma malha ortogonal, onde se verifica uma preocupação com a regularidade e com o ordenamento do espaço urbano. Os quarteirões eram rectangulares, e de proporções mais equilibradas que os quarteirões medievais. Os lotes urbanos que os compunham ou se organizavam em duas filas, costas-com-costas, ou davam para as quatro ruas que definiam o perímetro do quarteirão. Em qualquer dos casos, cada um dos lotes urbanos tinha uma única frente virada para a rua. Esta estrutura de loteamento permitia um maior aproveitamento do terreno disponível e traduzia-se numa estrutura claramente mais urbana. Tal como se havia já verificado no Funchal e em Angra, a hierarquia das ruas era agora estabelecida pelo seu perfil, pelas funções e pela arquitectura nelas construída, e pelas suas relações formais com a restante malha urbana.
Lisboa
Em Braga, trata-se das intervenções de D. Diogo de Sousa, Arcebispo de Braga entre 1505 e 1532, que reestruturou a cidade intramuros e programou a sua expansão para fora muralhas centrada na construção de diversos campos associados a funções religiosas. No interior da cidade, abriu novas ruas, alargou e alinhou outras, construiu e regularizou praças, de entre elas o largo do Paço e o largo da Sé, abasteceu a cidade de água e construiu chafarizes, e renovou ou construiu novas portas da cidade. Fora das muralhas, D. Diogo levou a cabo a construção de um conjunto de campos que no decorrer dos séculos seguintes viriam a tornar-se as principais praças da cidade. De todos os campos construídos por D. Diogo de Sousa o mais importante foi o campo de Sant'Ana, que transformou um antigo terreiro de feira extramuros numa nova praça urbana, à imagem de acções semelhantes empreendidas ao mesmo tempo noutras cidades do reino. Em todas estas intervenções são patentes quer as influências teóricas renascentistas quer as referências a intervenções urbanas concretas observadas directamente por D. Diogo de Sousa em Roma e em Florença. Para além disso, é bastante provável que D. Diogo conhecesse a tratadística deste princípio do século XVI. André de Resende, um dos homens das relações de D. Diogo de Sousa, veio a ser o tradutor para português do tratado De Re Aedificatoria, de Alberti.
Braga
Braga
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10. A influência teórica renascentista. A formação dos engenheiros militares.
Portugal teve um papel importante no desenvolvimento da cultura renascentista. As ciências da matemática, da cosmologia e da geometria, fundamentais para a arte de navegar, eram também bases essenciais do espírito científico renascentista e tiveram expressão directa no pensamento e na prática urbanística. Os contactos de Portugal com a Renascimento italiano começaram ainda no final do século XV. Andrea de San Savino passou nove anos em Portugal, entre 1491 e 1500 a convite de D. João II. A partir daí, diversos arquitectos italianos, e de outras nacionalidades, foram chamados a trabalhar em Portugal e nas suas colónias ultramarinas em diversas partes do mundo. Também no início do século XVI cerca de cinquenta artistas portugueses foram estudar para Itália, entre eles Francisco de Holanda, a que outros se iriam seguir. De diferentes formas, eram activos os contactos entre Portugal e a Europa, as relações entre técnicos e o intercâmbio de ideias. Cópias manuscritas ou impressas de tratados italianos, nomeadamente os de Alberti, de Giorgio Martini, e de Serlio, eram conhecidos e estudados em Portugal. Os "Dez Livros de Arquitectura" de Vitrúvio e o "De Re Aedificatoria" de Alberti foram traduzidos para português, bem como o tratado de Sagredo e o método de fortificação de Durer, por ordem de D. João III.
Os arquitectos e os engenheiros portugueses estavam assim, de diferentes formas, a par das novas concepções teóricas renascentistas no campo do urbanismo. A sua formação teórica beneficiava ainda da rica experiência científica desenvolvida pelos matemáticos e cosmógrafos envolvidos no empreendimento dos descobrimentos marítimos. A necessidade de ocupar e de defender os novos territórios ultramarinos, através da construção de fortes e de núcleos urbanos fortificados levou ao desenvolvimento da engenharia militar desde muito cedo. A fundação de escolas onde a geometria, a cosmografia e a arte de fortificar eram ensinadas, foram uma consequência natural desta situação. Da mesma forma, tratados portugueses de arquitectura militar e urbanismo, baseados na grande experiência prática dos portugueses na fundação de cidades em todo o mundo, foram também escritos a partir da segunda metade do século XVI. Os primeiros tratados portugueses de arquitectura foram escritos por António Rodrigues, em 1575, e por Mateus do Couto, em 1631, não tendo ambos sido publicados. Meio século mais tarde, em 1680, era publicado por Luis Serrão Pimentel o "Methodo Lusitânico de Desenhar as Fortificaçoens das Praças Regulares e Irregulares" e em 1728, por Manuel de Azevedo Fortes, "O Engenheiro Português".
A formação de arquitectos e engenheiros era de início essencialmente prática, realizada nos estaleiros de grandes obras como o mosteiro da Batalha, o convento de Tomar ou o mosteiro dos Jerónimos. Os arquitectos, portugueses ou estrangeiros, que orientavam essas obras eram simultaneamente os mestres de numerosos aprendizes, que eram posteriormente graduados em pedreiros ou mestres de obras através da realização de um trabalho prático. Muitas vezes estes Mestres eram chamados a trabalhar noutros locais. Primeiro o norte de África, depois a Índia e mais tarde o Brasil passaram a fazer parte de um percurso profissional, por vezes de anos, que constituía uma segunda escola de formação prática.
É no decorrer do século XVI que se sente a necessidade de criar um ensino formal da arquitectura e da engenharia militar. A partir de meados do século existiam aulas de cosmografia, ministradas no Armazém da Guiné e da Índia, onde trabalhavam os mestres das cartas de marear desde 1514. Pedro Nunes, cosmógrafo-mor do reino desde 1547, era aí o responsável por uma aula de matemática ministrada aos pilotos. Um pouco mais tarde, em 1559, era criada a Aula do Paço, onde se ensinava a geometria, a cosmografia e a arquitectura militar aos jovens da corte. A partir do final do século XVI torna-se mais premente a formação de técnicos especializados nos métodos de fortificação. Em 1590 é criada a Aula da Esfera no colégio de Santo Antão, da responsabilidade dos padres Jesuítas. Aí se ensinavam matérias como a matemática e a geometria, ligadas à engenharia militar. Já no período Filipino foi criada a Aula do Risco, onde se ensinava arquitectura, e as disciplinas incluíam a matemática, a geometria, a arquitectura civil e a arquitectura militar.
A partir da Restauração, com a premente necessidade de fortificar as cidades portuguesas, é fundada a Aula de Fortificação e Arquitectura Militar, ou Aula da Ribeira, que iria oficializar o título de engenheiro militar. Outras academias à imagem da Aula da Ribeira seriam também fundadas no Brasil, na Baía, no Rio de Janeiro, no Maranhão e no Recife. A formação destes técnicos, consolidada através de uma intensa prática profissional, permitia-lhes intervir nos domínios da engenharia militar e da fortificação, da arquitectura civil, bem como na definição de traçados urbanos, desde o seu desenho à execução no terreno, e ainda na execução de cartografia e de levantamentos geográficos. Para além desta educação formal, a experiência que os portugueses adquiriram ao longo de séculos com o levantamento de fortes e de fortalezas e com a definição de traçados urbanos, conduziu ao desenvolvimento de uma prática que se caracterizava pela adaptação do projecto às características do sítio e pela maleabilidade de intervenção.
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11. A multiplicidade de modelos do urbanismo colonial português em África.
As cidades coloniais portuguesas construídas a partir do século XVI eram uma componente essencial do movimento de expansão ultramarina e da política portuguesa de controlo das rotas marítimas e comerciais em que assentava o seu projecto de expansão. Na maior parte dos casos, as estruturas urbanas portuguesas construídas no contexto da expansão ultramarina não correspondiam a tipos puros de traçados. Nelas encontramos a síntese de padrões urbanos de origem vernácula e erudita, de referências medievais sintetizadas com ideais renascentistas. Os diferentes modelos de cidade eram adoptados conforme a sua adequação às condições políticas e económicas que haviam conduzido à sua fundação. São estas cidades que, se por um lado reflectem princípios urbanísticos desenvolvidos em períodos anteriores na metrópole, por outro lado vão ser o grande campo de experiência e de desenvolvimento do urbanismo português.No norte de África, as praças e cidades ocupadas ou construídas pelos portugueses adoptaram idênticos modelos, medievais e renascentistas, em sucessivas fases do seu desenvolvimento. A partir de meados do século XVI essas implantações urbanas são reestruturadas, adoptando-se regras de fortificação e de urbanismo influenciadas pelos ideais renascentistas e adoptando os seus modelos teóricos. É o caso de Ceuta que, conquistada em 1415, teve a sua cidadela desenhada por Miguel Arruda em 1541.
Mas o melhor exemplo de ordenamento urbano com influências renascentistas, no norte de África, é contudo Mazagão. Situada num ponto estratégico da rota Índia, Mazagão teve a sua primeira fortaleza construída em 1514, sendo posteriormente reconstruída em meados do século XVI. Dentro de um perímetro fortificado de forma quadrada defendido por bastiões nos quatro vértices, desenvolve-se uma estrutura de ruas ortogonais. Os quarteirões são predominantemente de forma rectangular, embora se observem algumas zonas, provavelmente anteriores à reestruturação urbana, constituídas por pequenos quarteirões irregulares. Todo o conjunto se centrava numa cidadela de forma quadrangular – que era a fortaleza inicial e que agora se localizava no centro da cidade – adjacente a uma praça de armas.
Ao longo das costas ocidental e oriental de África observamos a mesma síntese de diferentes modelos. A fortaleza de São Jorge da Mina, erguida junto à costa do Benim em 1481, apresenta ainda uma forma medieval, com as suas torres redondas. As cidades da Ribeira Grande, na ilha de São Tiago em Cabo Verde, povoada desde 1462, e a de Santo António, na ilha do Príncipe em São Tomé, povoada desde o início do século XVI, apresentam traçados que seguiam de perto a estrutura do território. Ambas as cidades se localizavam em baías, desenvolvendo-se para o interior ao longo de ribeiras. Na cidade da Ribeira Grande, sensivelmente a meio de um caminho ao longo da praia que acompanhava a curvatura da baía, e que ligava dois fortes construídos nos seus extremos, abria-se um largo onde se veio instalar o pelourinho e os edifícios municipais. É a partir deste largo que a cidade se desenvolve para o interior, através de duas ou três ruas que acompanham o percurso da ribeira que dá o nome à cidade. No século XVII, um novo núcleo construído em torno da Sé apresentava já uma estrutura ortogonal. Na cidade de São Tomé, na ilha de São Tomé, encontramos igualmente um traçado com características idênticas às primeiras fases de desenvolvimento das cidades da Madeira e dos Açores. Um caminho ao longo da baía, constituía a estrutura fundamental da cidade, que posteriormente se desenvolveu para o interior estruturada em sucessivas ruas longitudinais. A meio deste percurso, e também adjacente ao local onde desaguava uma ribeira, tal como na Ribeira Grande, desenvolveu-se a principal praça da cidade. Por sua vez, Luanda, fundada na segunda metade do século XVI, apresenta características de localização e de estruturação urbana idênticas às de outras cidades de origem portuguesa, nomeadamente Salvador da Baía, sua contemporânea, com uma zona baixa ligada à actividade marítima e uma zona alta onde se implantavam os principais edifícios institucionais.
Na costa oriental de África, a ilha de Moçambique constituía a escala mais importante da carreira da Índia. A sua estrutura urbana desenvolvia-se igualmente ao longo de uma rua que percorria longitudinalmente a ilha que, juntamente com algumas ruas secundárias, estruturavam um conjunto de quarteirões de forma irregular. Em qualquer um destes casos, à irregularidade dos traçados correspondem fortes e sistemas de fortificação desenhados rigorosamente segundo os modernos princípios da engenharia militar. O mesmo se verifica em Mombaça, onde a sua fortaleza foi construída de início com um forma regular abaluartada, tipicamente renascentista, junto da qual se desenvolveu um pequeno núcleo urbano onde não terá havido o mesmo investimento formal.
Ceuta
Mazagão
S. Jorge da Mina
Ribeira Grande
Santo António
São Tomé
Ilha de MoçambiqueMombaçaInício
12. A multiplicidade de modelos do urbanismo colonial português no Oriente.
Na Índia, as primeiras fortificações portuguesas construídas no início do século XVI foram ainda desenhadas de acordo com sistemas de origem medieval, com torreões e baluartes redondos. É o que se pode observar nas fortalezas iniciais de Chaúl e de Baçaim. O traçado urbano de muitos núcleos urbanos não apresentavam também características de grande regularidade. Goa, que desde 1530 se tornou o principal centro da presença portuguesa no Oriente, apresenta uma estrutura concêntrica, onde várias zonas começam a evidenciar uma estrutura tendencialmente regular, nomeadamente a zona da Ribeira. Em ambos os casos, tratou-se da ocupação de núcleos urbanos já existentes, onde a acção urbanizadora dos portugueses incidiu sobre a reestruturação de espaços já existentes e na criação de outros, polarizados normalmente em torno de conventos e de igrejas.
É só nos finais do século XVI que a influência da tratadística renascentista se faz sentir mais claramente, verificando-se a adopção dos seus modelos teóricos. Primeiro no desenho das fortificações, mais tarde influenciando os traçados urbanos a elas associados. Confrontados com uma cultura e civilização sofisticadas, havia a necessidade de afirmar uma efectiva presença portuguesa do ponto de vista militar, político e cultural. As cidades regulares inspiradas nos ideais renascentistas cumpriam estes objectivos da forma mais adequada.
Damão, situada na costa ocidental da Índia e construída na segunda metade do século XVI, é uma das cidades onde melhor se observa a aplicação destes conceitos. A regularidade do traçado em quadrícula, a fortificação de perímetro regular, a disposição das muralhas com bastiões nos ângulos, e a localização da cidadela no centro da cidade são idênticas ao traçado de algumas cidades ideais, denotando a sua influência renascentista. É o caso mais nítido, na Índia, da articulação do desenho da fortificação com o traçado regular no seu interior. Embora de forma menos estruturada, Baçaim, Chaúl ou São Tomé de Meliapor apresentavam algumas características de regularidade, evidenciando as mesmas influências. Embora não seja evidente a existência de um plano prévio ordenado como no caso de Damão, observa-se nestas cidades, seja nas zonas em que se reestruturavam malhas urbanas pré-existentes, seja em novas zonas de expansão, uma preocupação com a regularidade.
Macau, localizada na costa sul da China, apesar de fundada no final do século XVI, vai-se estruturar de uma forma pouco regular. A estreita península onde a cidade se situava era dominada pela fortaleza do Monte, construída em 1586. No traçado de Macau vão-se retomar mais uma vez princípios de estruturação urbana que se baseavam não na imposição de uma malha regular, fruto de um planeamento prévio, mas antes no desenvolvimento de vários núcleos urbanos centrados em torno de conventos e de outros edifícios institucionais. A via estruturante fundamental era a rua Direita, que percorria a península em toda a sua extensão. Ao longo desta rua articulavam-se vários conventos e outros equipamentos, alguns deles associados a largos e praças – como era o caso do Largo do Senado – e que constituíam outros tantos núcleos de crescimento urbano.
GoaDamãoBaçaimChaúlMacau
As cidades construídas pelos portugueses fora da Europa são sempre o resultado de uma variedade de influências e de modelos de referência, quer vernáculos quer eruditos, de diferentes momentos históricos. A cuidadosa adaptação de modelos racionais e de traçados regulares às condições topográficas encontradas em cada local, e o pragmatismo das soluções, caracterizam os traçados urbanos portugueses. Desta prática resultam cidades que embora não rigorosamente geométricas em planta, denotam na percepção dos espaços construídos uma notável regularidade, valorizada pelas particularidades locais. Através dos planos de diferentes cidades, em diferentes situações geográficas, é possível observarmos a evolução dos traçados urbanos ao longo dos séculos XVI a XVIII e a progressiva estruturação de uma prática e de uma teoria urbanística portuguesa, cada vez mais afastadas das referências vernaculares e cada vez mais próximas dos modelos racionais e eruditos.
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13. O urbanismo português no Brasil no século XVI. A intervenção do poder real.
Os traçados das primeiras cidades do Brasil, construídas no século XVI sem intervenção directa do poder real, tinham as suas raízes na tradição vernácula, adequada a uma política de ocupação do território feita lentamente pelos donatários, a quem era permitida a fundação de novas vilas onde o desejassem, se construídas ao longo da costa ou nas margens de rios navegáveis, ou separadas de pelo menos seis léguas, se construídas no interior. Pelo contrário, quando as cidades eram construídas sob os auspícios da corôa, eram adoptados modelos de cidades regulares – num primeiro momento, modelos de cidades medievais planeadas e, mais tarde, modelos teóricos de cidades ideais renascentistas.
De meados do século XVI a meados do século XVII foram fundadas no Brasil seis cidades, promovidas directamente pela Corôa portuguesa: Salvador da Bahia de Todos os Santos, São Sebastião do Rio de Janeiro, Filipéia de Nossa Senhora das Neves, São Luis do Maranhão, Nossa Senhora da Assunção do Cabo Frio, Nossa Senhora de Belém. Estas cidades eram de maior dimensão que as outras vilas e cidades fundadas por iniciativa dos donatários, eram planeadas e construídas por arquitectos e engenheiros militares, e a maior parte delas adoptava traçados regulares. Estes traçados urbanos regulares, inspirados nos ideais urbanos renascentistas cumpriam da forma mais adequada os objectivos políticos de controle do território, de controle do processo de colonização e de afirmação do poder real que estavam por detrás da fundação destas cidades.
Brasil
A cidade do Rio de Janeiro, apesar de aparentemente não ter sido objecto de um planeamento urbanístico inicial, antes evoluindo de forma tradicional a partir da ocupação inicial de um morro e de formas de povoamento linear ao longo da costa, acabou contudo por se estruturar também segundo um plano de base ortogonal. A ocupação da várzea entre os morros do Castelo e de São Bento a partir do início do século XVII vai-se fazer segundo uma malha sensivelmente ortogonal apoiada em sucessivas ruas transversais construídas paralelas à baía. O desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro, justificado pela sua crescente importância estratégica e económica, contou ao longo do tempo com o contributo de vários engenheiros militares, portugueses e estrangeiros, que planearam a expansão ordenada da cidade e mantiveram a coerência do seu plano urbano. Tal como noutras cidades, a regularidade do traçado molda-se sem esforço às particularidades do terreno, às preexistências naturais ou às construídas pelo homem, e à lógica dos percursos de ligação entre pontos fulcrais do território ou da malha urbana.
Rio de Janeiro
É na cidade de Salvador da Baía que encontramos contudo uma expressão bastante nítida da síntese de algumas das características fundamentais das cidades de origem portuguesa. Nomeadamente, a construção do núcleo urbano primitivo no cume de um monte, e a sua organização em dois níveis, a cidade alta e a cidade baixa, com funções e características bem distintas: a cidade alta, sede do poder civil e religioso e a cidade baixa, local onde se desenvolviam as actividades marítimas e comerciais. Por outro lado, nas instruções que em 1548 D. João III deu a Tomé de Sousa para a fundação de Salvador da Baía, encontramos expressas as preocupações da Coroa com a regularidade do traçado da nova cidade. A cidade alta de Salvador da Baía, construída num sítio elevado sobranceiro à Baía de Todos os Santos, foi uma cidade planeada segundo um traçado que, se por um lado, se adaptava às características topográficas do terreno e a um perímetro de fortificações de forma trapezoidal, por outro lado, era constituída no seu interior por quarteirões rectangulares, sensivelmente regulares. Daqui resultava uma malha regular, mas não perfeitamente ortogonal.
Salvador da Baía
A cidade inicialmente delineada por Luis Dias era constituída no seu interior por dois conjuntos de quarteirões, ambos de forma rectangular mas de diferentes proporções. Um destes conjuntos de quarteirões tinha uma estrutura idêntica aos quarteirões de cidades medievais planeadas. Os quarteirões do outro conjunto tinham uma forma mais quadrada e cada um deles era composto por lotes urbanos dispostos costas-com-costas ou fazendo frente para as quatro faces do quarteirão, numa estrutura idêntica à que encontramos no Bairro Alto de Lisboa ou na cidade de Angra, ambos contemporâneos. É nesta parte alta da cidade que se vieram localizar os principais edifícios institucionais e grande parte do tecido habitacional, enquanto na parte baixa se desenvolveram funções portuárias e mercantis.
Um contributo importante para o desenvolvimento urbano de Salvador foi o das ordens religiosas, particularmente dos Jesuítas. Uma nova muralha desenhada em 1605 envolvia uma área que correspondia a três ou quatro vezes a área original da cidade. No centro da nova expansão urbana, desenvolvida ao longo da segunda metade do século XVI, situava-se o Colégio e Terreiro de Jesus. O traçado desta nova área de expansão da cidade é claramente mais ortogonal e mais regular do que o núcleo original. A estrutura de loteamento dos quarteirões é igualmente regular, idêntica na sua estrutura e dimensões à do Bairro Alto. O Terreiro de Jesus foi concebido desde o início como uma praça regular e terá sido o verdadeiro elemento gerador da malha urbana envolvente. Estamos perante uma concepção radicalmente diferente, e moderna, de espaço urbano e de estruturação urbana, já prenunciado anteriormente em Angra. O elemento dominante e gerador da malha urbana é a praça, e já não, como anteriormente, os edifícios singulares e as ruas que os articulavam entre si. Desenvolvidos em múltiplas situações ao longo do século XVII, estes novos conceitos ir-se-ão expressar, plenamente desenvolvidos, nos traçados urbanos setecentistas - joaninos e pombalinos - construídos quer no Brasil quer na metrópole.
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14. A regularidade dos traçados urbanos do século XVII no Brasil.
Ao longo do século XVII verifica-se cada vez mais a adopção de traçados regulares, geometrizados, no planeamento de novas cidades ou nos planos de extensão de cidades já existentes. A tendência para a escolha de sítios planos, quer para as novas fundações, quer para a construção de novas expansões, em vez dos sítios acidentados preferidos ainda ano século XVI, foi um factor importante para a adopção de padrões regulares. Outra das razões para a crescente racionalização do urbanismo português tem a ver com a profissionalização dos técnicos encarregues do traçado e da urbanização das cidades, nomeadamente a importância cada vez maior dos engenheiros militares neste processo, que se verifica fundamentalmente a partir do século XVII.
As cidades de São Luis do Maranhão, de 1615, e Belém, de 1616, ambas situadas na costa norte do Brasil, são exemplos de cidades seiscentistas que adoptaram planos regulares. Embora de fundação contemporânea, estas cidades remetem para culturas urbanísticas distintas. No caso de São Luis de Maranhão, temos um traçado coerentemente organizado como um todo e obedecendo a um puro traçado ortogonal, se bem que o território onde se implanta não seja plano. A cidade estrutura-se segundo uma quadrícula, desenvolvida a partir do forte de São Luis. Neste traçado verifica-se a existência de uma praça central, de forma quadrada, inserida na quadrícula, no centro da qual se localizava a igreja de Nossa Senhora do Carmo.
São Luis do Maranhão
No caso de Belém, temos um traçado composto por malhas distintas, sensivelmente ortogonais, mas respondendo às particularidades do sítio. Fundada pouco depois de São Luis do Maranhão, a cidade de Belém desenvolveu-se também a partir de um forte, o forte do Presépio. A cidade, implantada num sítio plano, era constituída por duas malhas urbanas distintas construídas simultaneamente e cada uma delas com uma estrutura sensivelmente ortogonal. A separar uma da outra existia um pequeno curso de água e terrenos vazios sobre os quais, ao longo dos séculos XVII e XVIII, se estruturaram as duas grandes praças centrais de Belém. Uma destas praças estruturou-se progressivamente no decorrer do século XVII, no terreiro que separava a cidade da fortaleza. Neste espaço foram sendo sucessivamente construídos a Igreja Matriz, o Colégio Jesuíta e a Casa da Câmara. Simultaneamente, foi-se estruturando e regularizando esta praça, que nunca assumiu contudo uma forma geométrica perfeita. A segunda praça central de Belém, adjacente a esta, só no século XVIII se virá a desenvolver, associada à construção de um novo palácio do Governo. O que restava do vasto terreiro que separava as duas partes da cidade, até então um espaço urbano bastante irregular, foi reordenado e regularizado, transformando-se na grande praça nobre da cidade, à imagem das praças barrocas setecentistas. Um dos lados maiores desta praça, de forma rectangular, era dominado pelo novo palácio do Governo, tendo chegado a ser proposta a construção, no centro da praça, de uma estátua equestre de D. José, com o objectivo de a transformar numa verdadeira praça real na tradição das praças reais europeias dos séculos XVII e XVIII, o que nunca chegou a acontecer.
Belém do Pará
Lado a lado coexistem assim em Belém duas praças com funções distintas, que correspondem a momentos diferentes de construção da cidade, a diferentes tradições e culturas arquitectónicas e a diferentes modos de fazer cidade, e que coerentemente assumem formas distintas. A praça da Sé é o tipo de praça urbana mais corrente na tradição portuguesa, que nasce a partir de funções que nela se localizam e que só progressivamente se formaliza, numa associação estreita entre as funções e as formas dos edifícios que nela vão sendo construídos e a própria forma da praça. Geralmente, este tipo de praça nunca atinge uma forma geométrica perfeita. Na praça do Palácio do Governo, temos um tipo de praça regular e geométrica, construída de acordo com modelos eruditos, mas inserindo-se num tecido urbano já existente. Estas praças são por sua vez distintas da praça central de São Luis do Maranhão, no que se refere à sua relação com a malha urbana e com o processo de desenvolvimento da cidade. Em São Luis de Maranhão temos o tipo de praça moderna de inspiração renascentista concebida de raiz como uma forma regular, inserida num plano com uma lógica e uma estrutura geométrica que abarca toda a cidade, e que desde o início se assume como centro formal e funcional da cidade.
A dominação espanhola de Portugal, de 1580 a 1640, poderá não ser completamente estranha à adopção deste tipo de traçados regulares nas cidades de fundação portuguesa. A actividade de engenheiros militares simultaneamente ao serviço de Espanha e de Portugal, as influências mútuas que se verificaram no ensino da arquitectura e da engenharia militar, e a actividade legislativa de Filipe II, podem ter constituído importantes factores para a crescente racionalização dos traçados portugueses a partir do século XVII.
Outra influência importante que se verificou no Brasil foi a dos Holandeses, que ocuparam o Pernambuco a partir de 1630 durante cerca de um quarto de século. Nesse período, os holandeses planearam e construíram a cidade do Recife no local da antiga cidade portuguesa, de acordo com princípios da tratadística renascentista que se traduziram num traçado absolutamente regular e geometrizado. Apesar das destruições que se seguiram à capitulação holandesa, o traçado da cidade permaneceu e terá constituído outra das referências do urbanismo brasileiro setecentista.
Recife
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15. A fortificação das cidades no século XVII. Sua relação com os traçados urbanos.
A partir da Restauração em 1640, a necessidade de reforçar o sistema defensivo do país levou a que muitas cidades portuguesas sofressem intervenções baseadas nos sistemas defensivos que então vigoravam na Europa, segundo os exemplos das escolas francesa e holandesa. Três tipos de intervenção caracterizam o sistema de fortificação aplicados em Portugal no século XVII, com diferentes implicações na sua estrutura urbana.
O primeiro, corresponde à reutilização das muralhas medievais, reformuladas segundo os parâmetros modernos da época, através da construção de pequenos baluartes e outras obras exteriores. Esta intervenção veio condicionar a área urbana destas cidades aos seus limites medievais, limitando o seu desenvolvimento. Estão neste caso Miranda do Douro, Monsaraz ou Juromenha. O segundo tipo de intervenção corresponde à construção de nova cintura de muralhas, abarcando o tecido urbano que já se tinha desenvolvido fora da cerca medieval, como em Vila Viçosa, Moura, ou Campo Maior. A intervenção seiscentista, através da construção do novo sistema defensivo, veio consolidar e ordenar o tecido urbano existente, definindo hierarquias no seu traçado e reforçando a funcionalidade dos espaços públicos. O terceiro tipo de acção caracteriza-se pelo alargamento do perímetro urbano através da construção de uma nova cintura de muralhas, incluindo espaços ainda não urbanizados, como foi o caso em Monção, Caminha, Estremoz ou Chaves. Esta intervenção veio proporcionar o desenvolvimento de novas áreas urbanas, através da criação de infraestruturas, de equipamentos, e pela inclusão no novo perímetro urbano de edifícios potencialmente geradores de novos espaços públicos. Em qualquer dos casos, por razões defensivas, o novo sistema de fortificações não vai permitir a existência de arrabaldes ou de novas extensões urbanas. Estas só virão a ser possíveis novamente no século XIX.
Em muitos casos, a nova área urbana seiscentista irá englobar quer o burgo medieval, quer os antigos arrabaldes, onde se incluiam o terreiro da feira extramuros, os antigos caminhos de acesso, os conventos anteriormente localizados fora da cidade. A nova estrutura urbana vai desenvolver-se de forma a consolidar estas pré-existências e a reformular as suas funções no novo espaço urbano. Elementos anteriormente rurais transformam-se em elementos urbanos que irão estruturar a nova malha urbana. Os conventos anteriormente localizados em zonas rurais transformam-se em elementos geradores de espaços urbanos, como largos ou praças. Os antigos caminhos rurais irão transformar-se nas novas ruas que fazem a ligação entre os espaços públicos e as portas. O arrabalde passa a integrar-se na nova malha urbana e o burgo medieval perde muita da sua antiga centralidade, transformando-se na cidadela do novo recinto fortificado.
A definição do polígono defensivo, a forma dos baluartes e a implantação de todos os outros aparelhos militares, para além de terem em consideração a topografia do terreno, estavam condicionadas à integração dos elementos pré-existentes. A irregularidade do traçado das linhas de fortificação, que caracteriza os sistemas de fortificação portugueses, é o resultado destas condicionantes e da sua adaptação ao terreno. Tal implicava um grande trabalho de campo, de que resultava inevitavelmente alterações ao projecto inicial.
As muralhas seiscentistas tinham uma íntima relação com a estrutura urbana interna do burgo. A função militar coexistia com a função urbana, estabelecendo-se hierarquias de traçados e de espaços. A estrutura viária projectava-se em função do funcionamento militar, ligando as portas abertas nas novas muralhas, com os espaços públicos, com a praça da armas, e com a cidadela. As portas da cidade, sempre em número reduzido por razões de defesa, estabeleciam hierarquias de ruas. Aquelas que davam acesso a essas portas eram as vias principais, em termos militares e em termos da estrutura do burgo. A Praça de Armas, local de exercício e de reunião dos regimentos militares, constituía outro elemento importante da estrutura urbana. Idealmente, deveria localizar-se no centro do cidade, de forma a permitir, a partir dela, um fácil acesso às portas e às muralhas. Em Portugal, estas praças localizavam-se muitas vezes em área livres, algumas ainda com um carácter rural, junto a edifícios militares. Geralmente, não ocupavam o centro do polígono e eram sempre independentes das praças urbanas com funções administrativas ou religiosas, destinadas a usos civis. Com a perda de importância da função militar, a praça de armas torna-se em muitos casos uma praça com funções urbanas, delimitada por edifícios de uso não militar. Nalguns casos, como em Valença ou Estremoz, passa mesmo a ser a praça principal, em detrimento da velha praça do pelourinho.
Fora de Portugal, a Colónia de Sacramento, construída em 1680 pelos portugueses na foz do rio da Prata em frente a Buenos Aires, teve um desenvolvimento que apresenta similitudes com algumas destas cidades. A primitiva fortaleza de São Gabriel veio a tornar-se na cidadela de um núcleo urbano fortificado, no interior do qual se desenvolveu uma praça de armas de grandes dimensões, que futuramente se iria tornar na principal praça urbana.
Juromenha
Campo Maior
Caminha
Estremoz
Chaves
Colónia de SacramentoInício
16. A influência da igreja e das ordens religiosas no urbanismo português. A formação teórica e a prática de urbanização.
A igreja e as ordens religiosas tiveram um papel importante na estruturação das cidades. Por um lado, a implantação de uma ermida ou de uma capela, deram por vezes origem a aldeias e vilas. Por outro lado, os locais de implantação dos edifícios religiosos no interior da cidade tornaram-se habitualmente focos polarizadores do crescimento urbano. Os adros, pátios e terreiros que geralmente se encontravam associados às igrejas e conventos tornaram-se com o tempo praças urbanas integradas na cidade e importantes elementos estruturadores do espaço urbano. Alguns conventos tiveram um papel activo na urbanização da cidade, promovendo a urbanização de áreas próximas dos seus locais de implantação.
Natal
No Brasil, as ordens religiosas tiveram um papel relevante na criação de aldeamentos de índios, onde a organização do espaço urbano, e do espaço da casa, era muitas vezes utilizado como um instrumento de aculturação. A primeira acção das ordens religiosas era por vezes a sacralização dos aldeamentos índios, a que se seguia a sua reestruturação espacial.
Uma influência relevante no urbanismo português foi a dos Jesuítas. O ensino da geometria, da matemática, da arquitectura, da engenharia militar e da fortificação levado a cabo pelos Jesuítas nos seus colégios influenciou directamente a formação teórica dos engenheiros militares portugueses responsáveis por aqueles traçados urbanos. O ensino ministrado no Colégio de Santo Antão atingiu grande proeminência e levou um elevado número de estrangeiros a frequentá-lo. Alguns dos seus padres professores eram engenheiros militares de relevo, tendo a um deles - o Padre Simão Fallónio - sido concedido o título de engenheiro-mor do reino. A acção urbanizadora dos padres Jesuítas terá também influenciado a teoria e a prática urbanística portuguesas, e constitui uma referência importante para a compreensão dos traçados regulares das cidades portuguesas no Brasil. Esta influência verificou-se de diferentes formas. Por um lado, no papel que poderão ter tido na estruturação de novos bairros residenciais associados aos seus colégios, como aconteceu em Lisboa com o Bairro Alto, na zona que se desenvolveu na vizinhança do colégio de São Roque na segunda metade do século XVI, ou em Salvador da Baía, também na segunda metade do século XVI. Os colégios Jesuítas constituíam invariavelmente importantes pólos de crescimento das cidades, como se verificou em Salvador da Baía, e os pátios dos colégios ou terreiros de Jesús rapidamente se transformavam em praças urbanas com a construção ordenada de praças em seu redor.
Aldeia Sant'ana
Salvador da Baía
Por outro lado, a acção urbanizadora dos Jesuítas verificou-se também na fundação de Reduções, aldeias destinadas ao alojamento de populações índias cristianizadas na América do Sul, incluindo o Brasil. As Reduções foram criadas para alojamento dos índios convertidos, que se pretendia isolar dos não convertidos. A acção urbanizadora dos Jesuítas é aqui entendida de forma literal, tendo efectivamente planeado e construído estas aldeias, traçadas nos séculos XVI a XVIII, segundo princípios racionais e geométricos. Elemento fulcral de todas elas era a grande praça central, em torno da qual se dispunham a igreja, a residência dos padres, a escola e as oficinas, num dos lados, e as casas dos índios nos restantes três lados.
A forma destas Reduções era rigidamente estruturada do ponto de vista geométrico e simbólico. Um eixo longitudinal dividia a aldeia em duas partes. Sobre um dos lados desse eixo localizavam-se as componentes do programa religioso. Do outro lado, situava-se a praça monumental com o cruzeiro no centro. Perpendicularmente ao eixo longitudinal, existia um outro eixo que começava no acesso principal à aldeia, continuava até à praça e atravessava o portal principal do conjunto religioso. Estes mesmos princípios estruturantes, baseados na existência de dois eixos fundamentais e na ortogonalidade, aparecem-nos inscritos nas praças ou terreiros de Jesus dos colégios Jesuítas.
Abrantes
A influência dos Jesuítas na estruturação dos espaços urbanos portugueses verificou-se assim também de outras formas. Não só os terreiros de Jesus se vieram a tornar importantes praças urbanas plenamente integradas no plano da cidade, como na concepção de muitas vilas e cidades que o poder civil planeou e construiu no século XVIII se vão encontrar inscritos idênticos princípios de estruturação urbana. Existe, de facto, alguma identidade entre os princípios de composição adoptados nas fundações urbanas civis do século XVIII e os princípios de composição urbanística que se vinham desenvolvendo nos aldeamentos missionários jesuíticos desde os finais do século XVI. Em ambos observamos os mesmos princípios estruturadores de todo o conjunto urbano, que se baseiam na concepção de uma malha ortogonal na qual se vai inscrever quer o traçado das ruas quer o traçado e a organização dos quarteirões. Por outro lado, a identidade formal entre estas fundações urbanas tem a ver com a existência de uma praça de forma quadrada ou rectangular, localizada centralmente, que se inscreve nesta mesma malha e é geradora de todo o traçado. Por vezes, os novos traçados reproduzem fielmente os traçados jesuíticos. Embora a justificação religiosa e cosmológica do traçado jesuítico já não exista, este permanece nas suas características essenciais, respeitando a lógica da organização urbana.
Aldeia Maria
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17. O urbanismo iluminista no Brasil no século XVIII. A racionalidade dos traçados.
No século XVIII são construídas cidades, quer em Portugal quer no Brasil, com planos absolutamente regulares, concebidos segundo traçados geométricos, a maior parte das vezes ortogonais, onde se expressam alguns dos grandes temas do urbanismo clássico: a cidade planeada racionalmente na sua estrutura global, a praça como elemento central da malha urbana, e os conceitos de planeamento e de beleza urbana associados à regularidade do traçado e à adopção de modelos arquitectónicos uniformes, aos quais devem obedecer todas as construções de uma rua, de uma praça ou mesmo de uma cidade.
De entre as vilas e cidades fundadas no Brasil neste século com traçados regulares, muitas delas foram fruto da política urbanizadora de Pombal na segunda metade de Setecentos. Esta acção urbanizadora deve situar-se num contexto político preciso, em que eram questões fulcrais a delimitação de fronteiras entre Portugal e a Espanha e a afirmação do poder do Estado sobre territórios e populações até aí sob o domínio temporal dos missionários. As ordens religiosas - Jesuítas, Franciscanos, Mercedários, Carmelitas, entre outras - haviam sido, desde o início da colonização, um dos principais agentes urbanizadores do interior do Brasil. O projecto urbanizador de Pombal era uma componente fundamental da estratégia de ocupação efectiva do território. Por um lado, através da construção de fortificações em pontos estratégicos; por outro lado, através da fundação de novas vilas e cidades ou da mais simples e pragmática refundação de aldeamentos missionários e da sua integração numa rede urbana global.
Em qualquer dos casos existia uma preocupação com o ordenamento do plano e com o alinhamento de ruas e de fachadas. O rigoroso ordenamento urbano subjacente a estas novas fundações era ao mesmo tempo expressão da cultura racional europeia que se pretendia implantar e marca do bom governo. A formosura e o ordenamento destas vilas passavam também pela normalização da arquitectura dos novos edifícios a construir. Nestas novas fundações, uma praça habitualmente quadrada e localizada no centro da povoação constituía o elemento gerador do plano da cidade. Era a partir dela que se definia o traçado das ruas e se estruturava o conjunto da malha urbana, geralmente segundo um sistema ortogonal. Nesta praça, onde na maior parte das vezes se localizava o pelourinho, deveriam também ser edificadas a igreja, e a casa de Câmara e cadeia. Todos os edifícios de habitação deviam ter fachadas construídas de acordo com o mesmo traçado. Por vezes, algumas destas cidades tinham mais de uma praça, destinadas a funções distintas, parecendo afirmar a continuidade da tradição das praças múltiplas nas cidades portuguesas. Geralmente, numa destas praças estava localizada a igreja, com o cruzeiro, enquanto na outra se localizava a casa da câmara e o pelourinho. Contrariamente às cidades de períodos anteriores, o processo de crescimento destas cidades setecentistas já não era através da construção de sucessivas malhas urbanas, cada uma delas com as suas características morfológicas próprias, que se iam adicionando sucessivamente, mas sim a expansão da sua estrutura urbana original segundo regras que nela já estão implícitas.
Vila Bela
Vila Viçosa
Portalegre
A Vila de São José de Macapá, fundada em 1758, é uma das maiores fundações deste período, e representativa dos seus princípios urbanizadores. O plano de Macapá é gerado a partir de duas praças rectangulares, com as mesmas dimensões, a partir das quais se define o traçado das ruas e dos quarteirões dentro de uma lógica ortogonal. Embora, com raras excepções, as ruas e os lotes urbanos sejam todos da mesma dimensão, os quarteirões não são todos idênticos: a sua proporção e a sua dimensão variam, bem como a disposição e a orientação dos lotes em cada um deles. A articulação das ruas com cada uma das praças é também subtilmente diferente nos dois casos. As praças, que constituem o elemento central do plano a partir das quais a restante malha se desenvolve, não são simples espaços vazios correspondendo a quarteirões não construídos que se subtraem à malha. Em Macapá, tal como em outras vilas e cidades planeadas neste período, a malha reticulada que havia servido de base à concepção do conjunto não se traduzia literalmente na estrutura construída de ruas, de praças e de quarteirões, as quais se articulam num sistema compositivo mais complexo.
Macapá
Na Vila Nova de Mazagão, fundada em 1769, pelo contrário, temos uma correspondência literal entre essa malha conceptual e o traçado efectivo da cidade, dando origem a um traçado urbano simples e facilmente perceptível. O plano de Mazagão baseia-se numa malha reticulada regular, que define uma estrutura ortogonal de ruas e de quarteirões quadrados. O plano desenvolve-se a partir de uma praça central quadrada, que é obtida através da simples supressão de um dos quarteirões. O plano de Mazagão é, em vários sentidos, um plano mais simples e mais literal do que o plano de Macapá. Características comuns aos traçados das duas vilas podem encontrar-se na dimensão dos lotes, nas tipologias de habitação, e no modo como ambos os planos, apesar de concebidos de uma forma regular, segundo um traçado ortogonal, desestruturam as suas malhas para se adaptar às condições físicas do território. Mesmo quando se concebia uma cidade de forma racional e se projectava o seu plano, era o terreno sobre o qual a cidade se implantava que, em última instância, moldava esse traçado.
Mazagão
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18. As sínteses setecentistas da experiência urbanística portuguesa. O culminar da racionalidade e da abstracção.
As cidades setecentistas eram, por um lado, herdeiras de um saber teórico e de uma grande experiência urbanizadora desenvolvida na fundação de inúmeras cidades e acumulada ao longo dos séculos; por outro lado, elas representam, de alguma forma, a subversão e o empobrecimento dessa mesma experiência. Ao longo do século XVIII o urbanismo em Portugal seguiu um processo de cada vez maior racionalização e, ao mesmo tempo, de crescente abstracção relativamente aos espaços em que se implantava. A racionalidade do traçado, expressa na sua absoluta regularidade, secundarizava por vezes a correcta compreensão do sítio e a maleabilidade que até aí tinham caracterizado os traçados urbanos portugueses. A reconstrução pombalina da Baixa de Lisboa após o terramoto de 1755, as reformas urbanas do Porto na segunda metade do século XVIII, e o plano para Vila Real de Santo António, de 1775, constituem, de diferentes formas, a síntese da experiência urbanística portuguesa de séculos anteriores e a expressão de uma teoria urbanística portuguesa.
Cada um dos seis planos elaborados para a reconstrução da Baixa de Lisboa era expressão de uma diferente atitude para com as pré-existências e o antigo traçado da cidade. Seria adoptado o plano de Eugénio do Santos, o plano mais racional e inovador, aquele que mais se distanciava do traçado urbano antes do terramoto. O plano era polarizado por duas praças, o Rossio e o Terreiro do Paço, que já existiam antes do terramoto e que eram regularizadas e redefinidas na sua forma e orientação. O Terreiro do Paço foi concebido à imagem das praças reais europeias, com uma arquitectura uniforme em toda a volta e a estátua equestre de D. José I no centro. Uma malha ortogonal de ruas longitudinais e transversais unia estas duas praças. As ruas eram hierarquizadas, quer do ponto de vista urbanístico, quer do ponto de vista arquitectónico, pela sua posição no plano, pelo modo como se articulavam com o Rossio e com o Terreiro do Paço, pelo seu perfil, pelas suas cérceas e pelas características arquitectónicas dos edifícios, de composição e cércea uniformes, que ao longo delas se construíam de acordo com os projectos elaborados pela Casa do Risco das Obras Públicas.
Lisboa
Lisboa
Lisboa
As intervenções urbanas promovidas no Porto na segunda metade do século XVIII tinham por objectivo reestruturar a cidade e definir as suas principais linhas de expansão para lá das muralhas. Contrariamente aos planos para Lisboa e para Vila Real de Santo António, no Porto as intervenções urbanísticas da segunda metade de Setecentos não definiam uma quadrícula regular. Tratava-se aqui fundamentalmente da definição de eixos estruturadores do desenvolvimento da cidade extramuros, nos quais se viriam a apoiar as futuras expansões urbanas ao longo do século XIX. A regularidade do plano passava fundamentalmente pela unidade da arquitectura projectada para cada uma das suas ruas e praças.
É no plano de Vila Real de Santo António que se vão expressar de forma mais nítida os princípios racionais e abstractos que enformavam a urbanística portuguesa setecentista. Nesta cidade, construída de raiz, a racionalidade e a abstracção relativamente ao sítio são totais. A sua planta inscreve-se num rectângulo regular e tem um traçado de ruas absolutamente ortogonais definindo quarteirões quadrados e rectangulares. No centro do plano localiza-se uma praça quadrada, correspondendo a um quarteirão não construído; duas outras praças, também quadradas, mas de menores dimensões, localizam-se simetricamente, de um e outro lado, em relação à praça central. Encontramos uma grande identidade formal entre o traçado de Vila Real de Santo António e o traçado de outras cidades setecentistas construídas no Brasil. Quer uma quer outras entroncam na mesma tradição urbanística que, de forma mais ou menos elaborada, permeava a prática do urbanismo português na segunda metade do século XVIII. Em Vila Real de Santo António estão expressos de uma forma clara esses princípios: traçado ortogonal regular, simétrico, com uma praça central quadrada que constituía o elemento gerador do plano, e construída com edifícios obedecendo a um mesmo programa arquitectónico. Podemos ver em aqui a expressão construída de princípios abstractos de organização do território que, do ponto de vista teórico, José de Figueiredo Seixas levará ao limite no seu "Tratado de Ruação".
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19. A dupla vertente do urbanismo português. A síntese da teoria e da experiência prática.
O plano de Eugénio dos Santos para a Baixa de Lisboa é herdeiro da cultura urbanística erudita que teve a sua formulação no Renascimento e que a partir do final de Quatrocentos passou a enformar as intervenções urbanas nas cidades europeias. Ele é expressão de um amplo conhecimento teórico e de uma ruptura com o pragmatismo que dominava até então o urbanismo português. Manuel da Maia, o engenheiro-mor do Reino, representava, pelo contrário, a velha tradição prática do urbanismo português. Para Manuel da Maia, o verdadeiro acto de projectar realizava-se no confronto com o próprio terreno. Segundo ele, mesmo quando se fazia um projecto desenhado, a avaliação prática da sua viabilidade e a sua adaptação ao território constituíam os passos mais importantes do acto de projectar.
Lisboa
Já um século antes, Serrão Pimentel, engenheiro-mor do Reino de 1663 a 1678, reconhecia as virtudes do desenho prévio, embora considerasse que a prova final da sua justeza e da sua adequação ao sítio fosse, mais uma vez, feita no terreno, no confronto prático com a realidade. A prática dos urbanistas portugueses parece ter-se sempre situado entre estes dois extremos e, ao mesmo tempo, constituído sempre a sua síntese: de um lado, a teoria, o plano idealizado e o desenho; do outro, a experiência prática, o confronto com a realidade, a demarcação no terreno. A experiência prática terá preponderado na urbanística portuguesa até ao século XVII, vindo a racionalidade e a teoria a afirmar-se cada vez mais e finalmente a ganhar clara ascendência a partir de meados do século XVIII.
O primado da racionalidade iniciado no Renascimento, que lentamente foi permeando o pensamento urbanístico português teve a sua expressão plena em Vila Real de Santo António, enquanto realidade construída, e no manifesto teórico de Figueiredo Seixas. Ambos são exemplos da crescente abstracção que caracteriza o urbanismo português da segunda metade de setecentos. Ao mesmo tempo, a componente imaginativa e poética do urbanismo português foi sendo atenuada, subordinada à ordem racional, mas apesar de tudo nunca desaparecendo totalmente. Da cultura urbana portuguesa faziam também parte tradições, princípios e concepções urbanas que não tinham necessariamente uma base geométrica e que ao longo do tempo sempre sobressaíram nos seus traçados.
A cidade portuguesa foi em todas as épocas uma cidade concreta que procurava responder à realidade objectiva e material de cada momento e de cada situação, não se limitando a reproduzir modelos abstractos. Mesmo quando se estruturava segundo modelos planeados, eruditos, racionais e geométricos, procurava sempre adaptar-se à realidade material, ecológica e cultural em que se situava, sendo essa característica que acabava sempre por prevalecer. Alguns dos planos para a reconstrução da Baixa de Lisboa, de 1756, e os planos para a expansão e a reestruturação urbana do Porto, constituídos por várias fases que se prolongaram até ao final do século XVIII, representam precisamente o modo como essa outra dimensão do urbanismo português subsistiu, articulada com a racionalidade iluminista. Ambos nos reconduzem, particularmente no Porto, ao urbanismo português que cuidadosamente se articula com as particularidades do sítio, não obstante a matriz intelectual que lhe está por detrás.
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